quinta-feira, 28 de junho de 2018

A Revolução dos Bichos e a Revolução Russa

O livro “A revolução dos bichos” foi publicado em 1945 pelo escritor Eric Arthur Blair, mais conhecido como George Orwell. 

Vamos a um breve resumo.

O livro narra a história de uma revolta dos animais contra os homens. A ideia da revolução surge quando o velho porco Major reúne todos os bichos no celeiro e anuncia a profunda exploração de que são vítimas. Com um discurso inspirador, o porco conclama todos os bichos a juntos lutarem contra a tirania dos homens. Depois que Major morre, os outros porcos, animais de maior inteligência, passam a tramar a revolução, desenvolvendo um sistema de pensamento que chamam de animalismo. Muitos resistem a essas novas ideias, alegando que os animais não poderiam sobreviver sem os homens; outros preferem acreditar no corvo Moisés, que conta uma história a respeito de uma “montanha de açúcar” para onde os bichos irão depois da morte. Enquanto isso, o proprietário da granja, Sr. Jones, passa os dias a se embebedar, deixando os animais à míngua. 

A revolução acontece e os bichos expulsam da granja Sr. Jones, sua família e o corvo. Os vencedores passam então a se organizar sob a liderança dos porcos, estabelecendo mandamentos que pregavam a paz e a igualdade entre os animais, além da repulsa a todos os modos de vida dos humanos, como dormir em cama, beber álcool ou usar roupa. A notícia da revolução se espalha e o hino “bichos da Inglaterra” passa a ser cantado por toda a redondeza. Sentindo-se ameaçados, os proprietários das fazendas vizinhas juntam-se ao Sr. Jones e atacam a granja dos bichos. Os animais resistem graças às táticas de guerra de um de seus líderes, o porco Bola-de-neve. 

Porém, conforme o tempo passa, os porcos vão se assenhorando de vários privilégios. Trabalham menos e têm direito a mais comida. O porco Garganta, de palavra fácil e persuasiva, se encarrega de justificar tais privilégios, alegando a necessidade de manter os porcos saudáveis para o bem da revolução. 

Bola-de-neve e Napoleão, os dois porcos líderes, passam a discordar sobre tudo. Napoleão era um porco de aparência ameaçadora, enquanto Bola-de-neve era inventivo e dotado de boa oratória. O ápice da discórdia acontece numa reunião em que Bola-de-neve tenta convencer os bichos a construírem um moinho de vento. Napoleão se coloca contra a ideia e manda seus cachorros avançarem sobre Bola-de-neve, que foge da granja para nunca mais voltar. Napoleão passa a liderar, impondo uma rígida disciplina de trabalho aos bichos. Decide ainda construir o moinho , dizendo ter sido ideia dele. 

Conforme o tempo passa, os bichos trabalham cada vez mais e comem cada vez menos. Entre os personagens mais marcantes está o cavalo Sanção, o mais forte e trabalhador. Sanção compensa suas dificuldades cognitivas com o lema “trabalharei mais ainda”. Apesar de a comida ser escassa e os animais viverem na miséria, o porco Garganta estava sempre apresentando estatísticas que diziam que agora a produção era muito maior e a vida muito melhor. 

Napoleão e os outros porcos resolvem morar no antigo casarão do Sr. Jones e passam a comercializar com os humanos das granjas vizinhas. Quando os animais parecem se lembrar de que essas eram praticas proibidas pelos mandamentos inciais e pelos ensinamentos de Major, surge Garganta para convencê-los do contrário. Os porcos, dizia Garganta, mereciam tais benesses por serem os mentores da revolução, realizando todo o duro trabalho de mantê-la. 

O líder Napoleão, cada vez mais autoritário e paranoico, manda matar todos os animais que se colocam contra ele, acusando-os de estarem associados com o traidor Bola-de-neve. Os animais, que observam tudo com perplexidade, são convencidos de que a culpa de todo o mal que recai sobre a granja é de Bola-de-neve. 

A granja dos bichos é atacada por uma fazenda vizinha. Mesmo vencendo, os bichos acabam muito feridos. Enquanto os animais choram seus mortos, os porcos se embebedam no casarão. Em uma das passagens mais tristes do livro, o cavalo Sanção desmaia de tanto trabalhar e é levado para o matadouro. 

O tempo passa, muitos personagens morrem, e a “revolução dos bichos” vira uma lenda, da qual poucos ainda se lembram. Os porcos mudam o nome da granja e sua bandeira. Passam a andar sobre duas patas, a usar roupa, a beber e a conviver com os homens. Os animais continuam a ser explorados, agora não mais por humanos, mas por outros animais. Mal podem distinguir um porco de um homem. No alto do celeiro, onde antes havia a inscrição de mandamentos que pregavam a igualdade entre os animais, agora se inscrevia: “TODOS OS BICHOS SÃO IGUAIS, MAS ALGUNS BICHOS SÃO MAIS IGUAIS QUE OUTROS”.

Esse livro é lido hoje de maneira um tanto anacrônica como espécie de ironia ao socialismo; é interpretado como um atestado da natural falência do sistema socialista, tendente a tirania. Porém, para uma melhor compreensão, é necessário devolvermos o texto as condições de sua produção. O próprio George Orwell era socialista, e depois de ter lutado ao lado de grupos trotskistas na guerra civil espanhola, saiu profundamente impressionado com o aparato repressivo soviético. George Orwell escreve em 1947 "convenci-me de que a destruição do mito soviético era essencial para conseguirmos reviver o movimento socialista”. De fato, o livro é todo construído como alegoria da Rússia soviética. Vejamos algumas semelhanças.

Começando por Major, o porco que inspira a revolução, cuja semelhança com o principal teórico do socialismo, Karl Marx, não é mera coincidência. O texto “Manifesto comunista”, que tem Marx por um dos autores, pressupõe a divisão da sociedade moderna em “burguesia” e “proletariado”. O texto de Orwell divide os seres em “homens” e “animais”. A exploração do proletariado pela burguesia seria, ao modo do romance, a exploração dos animais pelo homem. O manifesto descreve o proletariado como mercadoria a serviço da burguesia. O livro descreve os animais como simples instrumentos para o deleite dos homens. Major incita os animais à “revolução” contra seus algozes. Marx conclama os proletários à revolução comunista. O tratamento “camarada” (no original, comrades), usado pelos animais, é amplamente utilizado no universo comunista. Tanto no “manifesto comunista”, como no romance, a revolução é entendida como inevitável. A canção proposta por Major como hino “bichos da Inglaterra”, guarda semelhanças com a “Internacional”, canção composta no final do século XIX e que mais tarde se tornaria o hino da União Soviética. 

Referência que nos assombra pelos detalhes é a do corvo Moisés. A começar pelo nome bíblico, o personagem representa claramente a igreja Ortodoxa Russa .Dentro do império, essa igreja é considerada conformista e resignada, subserviente e subordinada funcionalmente ao poder tsarista. Moisés, no romance, promete um paraíso pós-morte para os animais; ideia combatida pelos porcos. É conhecido o componente antirreligioso do comunismo, que compreende a religião como felicidade ilusória. Daí a famosa expressão de Marx, “a religião é o ópio do povo”. No livro, a revolução expulsa o corvo, que mais tarde é trazido de volta pelo porco Napoleão, clara referência a reaproximação de Stalin com a Igreja Ortodoxa Russa durante a Segunda Guerra Mundial.

Porém, dentre todas as referências, a mais explícita é a dos personagens Bola-de-neve e Napoleão. Esse dois porcos lutam no enredo para liderar os animais. Na União Soviética, a luta pela sucessão do poder se polariza entre Trotski e Stalin. Bola-de-neve é o responsável por comandar os bichos na defesa da granja. Trotski é o organizador e chefe do exército vermelho soviético. Bola-de-neve estimula os pombos a levarem informações da revolução para fora da granja com o objetivo de incitar os animais à rebelião. Trotski era defensor do socialismo internacional e crítico ferrenho do “socialismo de um só país”. Napoleão expulsa Bola-de-neve da granja para nunca mais voltar. Trostki é expulso da União Soviética e Stalin assume o poder. Napoleão faz julgamentos públicos e manda matar muitos animais com base em confissões. Na União Soviética, os processos públicos, baseados exclusivamente em confissões, eram comuns. Finalmente, Napoleão concede honrarias a si mesmo , chama-se Líder, manda fazer verso sobre si. A União Soviética testemunhou um formidável culto a personalidade de Stalin.

Por fim, Garganta, o porco encarregado de convencer os animais, é inegável referência aos poderosos órgãos de propaganda de Stalin, que durante o governo usava mentiras e reescrevia a história para mantê-lo no poder. A reescritura da história está presente em todo o livro, da ressignificação da batalha inicial até a reescritura de cada um dos mandamentos. 

Essas e muitas outras são as semelhanças de enredo que não poderiam ser ignoradas no momento de sua publicação. Não foi fácil para George Orwell publicar sua história, pois nem a Inglaterra, nem os Estados Unidos gostariam de se indispor com a União Soviética e seu Exército Vermelho, tão necessário para conter os nazistas. Retratar os comunistas russos como porcos autoritários não era nada conveniente. O irônico é que anos mais tarde, durante a Guerra Fria, o livro passaria a ser produzido em larga escala nos Estados Unidos, como propaganda anticomunista. 

Hoje o livro é tão popular e difundido que as semelhanças com a Revolução Russa são ignoradas. Concebido inicialmente como uma crítica ao sistema repressivo soviético, a Revolução dos Bichos ultrapassou seu próprio tempo, transformando-se numa fábula poderosa sobre os mecanismos do poder e sua corrupção. Passadas seis décadas de sua publicação, tornou-se uma ode à liberdade e uma arma contra a tirania.

Bibliografia:
ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. Traduzido por: Ferreira, Heitor Aquino. SP: Companhia das Letras,2007.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
Reis Filho, Daniel Aarão. As revoluções russas e o socialismo soviético,SP: UNESP, 2003.

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